"Falta definir uma política criminal"

De GUILHERME DE SOUZA NUCCI

Tribuna do Direito —
A que se pode atribuir o florescimento de organizações como o PCC?
É o resultado da superlotação das cadeias?
Guilherme de Souza Nucci — É o descrédito total que o sistema fechado tem hoje. O que parece justo é fazer uma operação ‘Pente Fino’ no Direito Penal. Limpar uma série de bobagens. Como é que se pode pensar hoje em punir ociosidade?
E tem-se a contravenção penal ser ocioso sem ter renda própria para sobreviver. Mendigar, pedir esmola por ociosidade, é infração penal. Imagine-se levar isso a sério e começar a punir essas pessoas. Vai-se precisar de um estádio de futebol para prender o número de mendigos e pessoas que, eventualmente, até nem queiram trabalhar. Isso sem pensar nas vítimas do desemprego, mas nas que não queiram trabalhar. Existe uma série de infrações penais inúteis que mereceriam ser colocadas para fora do Direito Penal. Se existe o crime e não se pune, cria-se o sentimento de impunidade.
E aí o brasileiro pensa que a lei no Brasil é para os outros, não para ele. É fundamental deixar o Código Penal para crimes graves.
A última grande reforma no Código Penal foi em 1984, na Parte Geral.
Nos crimes não se mexe desde 1940. Mais defasado, impossível. Vamos limpar o código, deixar os crimes graves e punir com eficiência, com muita eficiência. Temos de ter um cárcere adequado. Não haveria o PCC com o regime fechado, que está na lei: isolamento durante a noite, cada preso na sua cela, sozinho, e trabalho coletivo durante o dia, fiscalizado. Como se organizar dentro de um presídio se o preso dorme sozinho, e quando sai da cela de manhã fica o dia inteiro sob fiscalização, trabalhando em atividade de lazer ou em atividade educacional. Nunca vai estar pensando em bobagem, agrupado com meia dúzia de outros ociosos. Não há condição de nascer o PCC.
TD — Falta vontade política para resolver a situação?
Nucci — Sim. Nos últimos anos, a situação vem melhorando. Já houve épocas piores. A da Casa de Detenção era um absurdo. Sete mil pessoas num complexo não reformam ninguém, não melhoram ninguém. Não há condição de tratamento. Presídios têm de ser menores, com um Estado eficiente, observando o que cada preso está fazendo, promovendo a ressocialização, etc. As coisas melhoraram, mas estão longe do ideal. E por que não há um investimento potente nesse campo? Porque preso não dá voto. É muito simples. Qual o governante que vai a um programa de televisão dizer que construiu tantos presídios, melhorou a vida no cárcere; que hoje os presos estão em celas autônomas, independentes; que comem cinco vezes por dia; que não são torturados; não são barbarizados; que recebem educação? Quem vai ser doido de fazer isso? Perde todos os votos. É muito difícil até para o político investir em cadeia e assumir. Como isso não dá voto, o investimento é muito pouco. Não se cria vaga em número necessário.
TD — E a questão da superlotação?
Nucci — Quando se fala em superlotação, a culpa é do Judiciário. É o juiz que não solta e é o juiz que prende demais. O juiz prende demais porque a criminalidade está alta. É como o cachorro que corre atrás do rabo. A criminalidade está alta por que? Problemas sociais. Porque não há emprego, as pessoas não têm o que fazer da vida, então partem para o crime. Ou por que olham para cima e vêem o colarinho branco cometendo o que bem entende sem nenhuma punição? Por que não vou furtar, então? Sou um coitadinho aqui, não tenho a caneta na mão, mas tenho um revólver. É uma situação estrutural difícil de ser solucionada. Evidentemente, nunca vai ser solucionar num estalar de dedos. Há coisas importantes que se pode fazer imediatamente. Primeiro: enxugamento do Direito Penal. É fundamental para acabar com o sentimento de impunidade; segundo: ampliar o número de cárceres, pelo menos em número suficiente para que o regime fechado seja cumprido como manda a lei; terceiro: construir o presídio federal prometido por lei desde 1990. A Lei dos Crimes Hediondos é clara: a União manterá presídios federais de segurança máxima para receber pessoas como traficantes perigosos, etc. Cadê esse presídio? Não existe nenhum. Está nascendo o primeiro presídio, parece que vai ser inaugurado, segundo a imprensa noticiou, no Paraná. Por que? Porque o “Sr. Fernandinho Beira Mar” já circulou pelo Brasil inteiro e ninguém quer ele. Acordaram para o problema, faz quase 20 anos que a União tem a responsabilidade de construir um presídio federal, entra governo e sai governo. Por que? Porque não dá voto.

TD — E a redução da maioridade penal. Muitos advogam essa redução.
Nucci — Tecnicamente, tenho escrito nos livros que não vejo problema em considerar, hoje, um menor de 16 anos plenamente capaz. A modernidade, a vida de hoje, já educou os jovens para discernir tranqüilamente entre o certo e o errado. Não consigo mais perceber que só a partir dos 18 anos nasce um adulto. No mínimo, poder-se-ia flexibilizar isso, fazer uma faixa, como existe em outras legislações, de 14 a 21 anos. Quem cometer uma infração seria avaliado psicologicamente. Se tiver condições de entender o que fez, responde. Se não tiver, dá-se o tratamento de criança. Isso tecnicamente. Politicamente, para o Brasil, que é um País miserável, pobre, na sua imensa maioria, realmente é uma maldade. Pegue-se um garoto de 15 anos e coloque-o no antigo Carandiru. O sistema já é cruel para quem tem mais de 18 anos, para qualquer um. Imagine quem tem 15, 16 anos. Não vai se recuperar nunca mais. É uma questão política. Se baixar a idade penal, piora. A Febem não funciona. Mais uma razão. Se nem o regime de internação para menores dá certo, imagine-se lançar o garoto em um sistema carcerário apodrecido. Dá menos certo ainda. Tecnicamente, não veria problema nenhum de baixar a idade penal, porque a modernidade já permite isso. O grau de responsabilidade, de inteligência, dos menores é diferente de 1940. Por outro lado, politicamente é inconveniente, até que pelo menos tenha-se cárceres razoáveis.

TD — Como o senhor avalia o instituto da prisão perpétua?Nucci — Primeiro, a prisão perpétua é vedada constitucionalmente, é cláusula pétrea, não há nem o que se discutir. A mesma coisa ocorre com a pena de morte. Não há necessidade nem de prisão perpétua nem de pena de morte, desde que o criminoso recebesse uma punição de 20, 25 anos e cumprisse efetivamente a pena. E não um arremedo de pena, pois se é condenado a 20 anos, cumpre dois anos e está na rua. Se condenado a 15 anos, cumpre um, dois, cinco e está na rua. Se efetivamente ele cumprisse a pena. Uma coisa preocupa: o limite de cumprimento de penas.
TD — Como assim? Nucci — O artigo 75 do Código Penal diz que ninguém passará mais de 30 anos no cárcere. Não concordo. Uma coisa é prisão perpétua. Alguém cometeu um homicídio qualificado grave, matou uma pessoa, prisão perpétua por um erro. Temos criminosos condenados a 200, 300, 400 anos de reclusão. O “Bandido da Luz Vermelha”, por exemplo, foi condenado a 326 anos de reclusão. Baseado no critério da pena mínima, supõe-se que para ele atingir 326 anos cometeu muitos crimes. Qual a razão que justifica que este indivíduo, que tem de cumprir 300 anos de reclusão, obrigatoriamente tenha de estar quitado aos 30? Menos de 10% da pena. Acabou, é suficiente. E se não for? E se ele disser que assim que o colocarem em liberdade, vai matar de novo? Ainda assim, abre-se a porta, como se dissesse “Saia, e mate de novo.” Isto me preocupa muito. Sou contrário ao limite de 30 anos. Vamos enfrentar problemas com a massa carcerária que vem aí, porque o “Bandido da Luz Vermelha” foi o primeiro, mas existe uma série, que praticou uma criminalidade mais difícil dos anos 70 para cá, que está batendo em 30 anos. Vamos começar a soltar. Assim que o primeiro destes, que tem 300 anos sair da cadeia, delinqüir de novo, o Congresso vai ser pressionado pela mídia a tomar uma postura. Mas a lei penal não pode retroagir, prejudicar o réu. Só vai valer dali para a frente. Conseqüentemente, está-se com uma ratoeira montada. Não concordo em hipótese nenhuma com isso. Alguns dizem que é o princípio de humanidade, se não se educou em 30 anos de prisão não se vai educar mais. Mas também existe a questão da segurança pública. São dois interesses.
TD — E o que vai prevalecer?Nucci — Digo aos alunos que perguntam se qualquer um não merece uma nova chance, que se ponha em livramento condicional. Nos Estados Unidos, existe a pena de prisão perpétua e alguns com e outros sem possibilidade de livramento condicional. Supondo-se que uma pessoa que tem 300 anos de reclusão está muito bem aos 30. Há laudo criminológico favorável? Está recuperada? Põe na rua em liberdade condicional, vigiada pelo Estado? Errou, partiu para uma agressão, antes de chegar ao homicídio, volta e termina a pena. A pena é de 300 anos, não de 30. Está-se dando uma chance. Julgar extinta a punibilidade depois de 30 anos é um erro lamentável. Não acho que a prisão perpétua seja a solução, mas também não gosto desse limite de 30 anos.

TD — O senhor acredita no caráter ressocializador da pena?
Nucci — Acredito. Acho importante. Especialmente para os réus primários, por mais graves que os crimes sejam. Para quem cometeu o crime pela primeira vez, o papel de ressocialização é fundamental para que retorne à sociedade e não volte a delinqüir. Como fazer? Existem experiências que dão certo pelo Brasil afora, geralmente conduzidas por organizações não-governamentais que também atuam dentro do presídio. E outras experiências que lamentavelmente dão errado. Aos alunos que perguntam como fazer para resolver o problema da ressocialização que não deu certo em determinada cidade e funcionou bem em outra, costumo dizer que para ressocializar é preciso um ser humano delinqüente, uma harmonia e uma vocação. De quem? Do juiz da execução penal, do promotor da execução penal, da organização não-governamental, do Estado Executivo que paga as contas. Todos precisam ter a mesma meta: olhar a cadeia, o ser humano, aquele ambiente, e decidir trabalhar por isso. Caráter ressocializador implica em todos trabalharem em harmonia, como uma orquestra. Acredito que dê certo. Há experiências que mostram isso. Infelizmente, na maior parte do Brasil há um descompasso. O juiz é vocacionado, mas o Estado não dá recursos. O juiz não é vocacionado, mas o Estado quer impor um presídio modelo. Não dá. Ou todo mundo trabalha em conjunto ou a execução penal não sai.

TD — O que o poder público deve fazer para reduzir a impunidade e combater a criminalidade?Nucci — O brasileiro espera a punição efetiva do Estado, sem blá-blá-blá. Não é possível assistir-se a casos escabrosos de corrupção, de sonegação, de assalto à máquina pública estatal praticamente às claras, e ninguém fazer nada. O povo vai-se traumatizando, porque eu, como cidadão, quando vejo essas coisas se acumularem, vai me dando desgosto, vontade de não cumprir lei nenhuma. De não pagar nenhuma multa de trânsito. Não tem outro mecanismo a não ser criar uma “vergonha nacional” e exigir que se A. ou B. que é pobre vai para a cadeia tranqüilamente furtando banana na feira, por que não o que pratica corrupção abertamente, que viola sigilo, que sonega, que faz e acontece? Sem igualdade não haverá sistema penal eficiente em lugar nenhum do mundo. Porque começa a gerar, no próprio juiz que vai julgar o ladrão de banana, um sentimento de revolta. Em segundo lugar, deve-se investir no sistema penal carcerário decentemente, para não virar escola de crime, como é em muitos lugares; em terceiro, cortar a impunidade pela raiz. Isso não significa necessariamente cadeia, mas punição. Pode ser uma pena alternativa, uma multa, mas punição. E uma última coisa que me preocupa: cada vez mais amplia-se no Brasil o foro privilegiado. É uma desigualdade injustificável numa democracia que o fulano, por ser fulano, tem de ser julgado numa Corte mais elevada. O Supremo acabou de declarar inconstitucionais os parágrafos I e II do artigo 84 do Código de Processo. Por que? Porque queriam dar aos políticos, em ação civil, foro privilegiado. O Supremo decidiu que é inconstitucional estipular foro privilegiado no Código de Processo por lei ordinária. Quer dizer: teria de pegar todas ações civis que tenho na minha vara contra políticos em geral e mandar para o tribunal.

TD — Qual a sua opinião sobre o Tribunal do Júri?
Nucci — O Tribunal do Júri só dá certo em países que adotam o direito consuetudinário. Se tem-se uma formação calcada em costumes, que podem valer mais que a lei em certas situações, inclusive em âmbito penal, civil, etc., pode-se chamar, em primeiro lugar, o povo para julgar. Porque o povo vai julgar de acordo com o senso comum, o mesmo que o juiz usa para dar a decisão. O Brasil não precisa de júri, por ser País de direito codificado. Chamam-se sete pessoas leigas, que não sabem nada de Direito, para julgar de acordo com a lei. Nos Estados Unidos, o juiz que preside o júri foi eleito pela população, disputou uma eleição. No Brasil, os juízes são togados, concursados, imparciais. Se for suspeito, é afastado e colocado outro. Se o júri é tão importante como bandeira da democracia, como alguns dizem, deve-se ampliar a competência. Deve-se defendê-lo para todos os delitos. O Tribunal do Júri não faria falta no Brasil, mas, como existe, tem-se de respeitá-lo.
Criador de cães de raça
Logo no primeiro ano do curso de Direito da Universidade de São Paulo, Guilherme de Souza Nucci pensava em prestar concurso público. Colou grau em 1985, após estágios em escritórios de Advocacia e no Centro Acadêmico XI de Agosto. O primeiro concurso do qual participou foi para o Ministério Público, meses após a formatura. O objetivo, entretanto, era a Magistratura, na qual ingressou em 1988, começando a carreira como juiz-substituto em Mogi das Cruzes. Lá mesmo começou a dar aula na Universidade Brás Cubas. Depois foi transferido para Itapeva e, em seguida, para São Paulo. Lecionou Direito Penal diversos anos na Unip (Universidade Paulista) e interessou-se pela área acadêmica. É mestre em Processo Penal, livre-docente em Direito Penal pela PUC-SP e professor de pós-graduação strictu sensu de Processo Penal da UniToledo de Araçatuba. É, também, coordenador e professor de pós-graduação em Direito Penal e Direito Processual Penal na Escola Paulista da Magistratura.Casado com Náila Cristina Ferreira Nucci, colega de turma da Faculdade, escreveu com ela o livro Prática Forense Penal, lançado este ano pela Editora Revista dos Tribunais (ver página 8). É autor, ainda, do Código Penal Comentado, Código de Processo Penal Comentado, Manual de Direito Penal, Individualização da Pena, O Valor da Confissão como Meio de Prova no Processo Penal, todos pela RT. Júri — Princípios Constitucionais e Crimes de Trânsito, pela Editora Juarez de Oliveira, além de outros em co-autoria.Tem duas filhas, Amanda (18 anos, no primeiro ano de Direito), e Natália, (17). Com elas pratica mergulho (esporte que não conta com a aprovação da mulher). Já mergulharam no litoral fluminense, no Nordeste e no Caribe. A família viaja regularmente para a casa de campo de Campos do Jordão, onde cria, como hobby, cães das raças rotweiler, mastiff inglês, dog alemão e golden retriever.(FM)

Brasil ainda não definiu a política criminal que quer adotar, e para isso deveria haver um amplo debate com todos os setores da sociedade, notadamente as organizações não-governamentais. Esse é um dos principais problemas que interfere na situação carcerária do País, alerta o juiz Guilherme de Souza Nucci, da 9ª Vara da Fazenda Pública, professor de Direito Penal e Processo Penal e autor de diversos livros sobre temas penais.“Não sabemos se queremos ser como os Estados Unidos, e ficaríamos com a maior população carcerária do planeta, ou preferimos o
modelo da Noruega, que solta todos os presos. Se por um lado temos cárceres desumanos e superlotados, por outro temos também uma série de regalias que, conforme o tipo de delito praticado, não dão absolutamente em nada”, observa Nucci. “Se eu condenar uma pessoa em São Paulo a dois anos por furto qualificado, e colocar no regime aberto, essa pessoa irá para casa. Como não há casa de albergado, ficará em prisão domiciliar. Quem controla? Absolutamente ninguém. O que essa pessoa sente? Que furtou e está em casa, então irá furtar tantas vezes até parar no regime fechado. O furto só irá doer quando o indivíduo estiver na cadeia. Mas aí, irá para uma cadeia superlotada que não oferece trabalho, que não dá ensinamento, não dá nada.”
“O furto só irá doer quando o indivíduo estiver na cadeia”

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