Jornal do Advogado -
Maio de 2006 - número 306
Entrevista com Yves Daudet
Yves Daudet é professor de Direito Internacional da Universidade de Paris I – Panthéon Sorbonne (França) e secretário-geral da Academia de Direito Internacional de Haia (Holanda). Autor de várias obras, entre elas O direito à educação (Unesco, 2001) e A Organização das Nações Unidas, que está para sair pela editora Dalloz, realizou inúmeras missões no exterior, destacando-se a que desenvolveu nas Ilhas Maurício, onde foi responsável pela criação da faculdade de Direito e também de cursos profissionalizantes judiciários.
O professor Daudet esteve em São Paulo em 25 de abril último para proferir palestra na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (Fadusp) sobre Os Estados desestruturados e a comunidade internacional. Na ocasião, concedeu entrevista exclusiva ao Jornal do Advogado em que afirmou que o mundo não pode ficar indefinidamente num sistema de uma única superpotência e que é preciso encontrar um novo equilíbrio entre as Nações. Leia, abaixo, os principais trechos da entrevista.
O que são esses "Estados desestruturados" a que o senhor se refere?
São os Estados falidos, aqueles em que as autoridades não conseguem manter a ordem pública, não conseguem manter os serviços públicos, não conseguem planejar nem executar políticas, enfim, que não têm poder para exercer as suas atribuições. São países em crise, que muitas vezes acabam vivendo uma situação de guerra civil. Desde 1989, quando ocorreu a Queda do Muro de Berlim, até 2001, quando aconteceram os atentados de 11 de setembro em Nova York, podemos citar como exemplo de Estados desestruturados que enfrentaram, ou ainda enfrentam, graves crises, Somália, Bósnia, Haiti, Ruanda, Congo, Timor Leste, Afeganistão e Iraque.
Equiparo a situação desses Estados enfraquecidos a um corpo debilitado por uma doença, que se torna mais e mais vulnerável à medida que a doença avança. E quanto mais fracos, mais se tornam uma ameaça à comunidade internacional. É muito mais perigoso um Estado fraco do que um Estado dominador.
Por quê?
Porque os Estados enfraquecidos provocam vulnerabilidade no conjunto, acarretando a vulnerabilidade da ordem internacional. Num Estado fraco, que não consegue exercer controle sobre o seu território, o banditismo se instala, o tráfico internacional de drogas, de armas, de mulheres e crianças progride, a imigração ilegal dá-se sem nenhum controle, ou seja, esses países tornam-se terra sem lei, em que passa a prevalecer a vontade do mais forte. E isso tudo se transforma numa grande ameaça à paz e à segurança internacional, mormente porque, do ponto de vista do Direito Internacional, que é extremamente formal, esses Estados falidos continuam a existir – têm embaixadas, representação nas organizações internacionais, quer dizer, não entraram em dissolução como aconteceu com a Iugoslávia e a União Soviética.
E o que é preciso ser feito para resolver esse problema?
Os Estados fracos precisam ser socorridos. É preciso empreender operações de restauração do Estado. A primeira operação desse tipo de que me lembro foi no Cambodja, em 1992. Não que o Cambodja funcione perfeitamente, não, mas tem uma administração e os responsáveis pelas matanças que lá ocorreram estão sendo julgados. Mais recentemente, em Timor, a ajuda internacional foi fundamental para instalar um Estado na parte oriental da ilha.
Essas operações incluem também o processo de retirada de minas terrestres em países que foram conflagrados pela guerra civil durante muitos anos, como Angola. E a instalação de tribunais penais internacionais. Mas, fundamentalmente, é preciso agir sempre de maneira multilateral, com as nações agindo em conjunto. A reconstrução de um Estado passa pelo desenvolvimento do Estado Democrático de Direito, pelo respeito aos direitos humanos e aos direitos fundamentais. Mas como os problemas são diferentes de país para país, pois cada um tem sua cultura, seus costumes, seu passado, não há um kit aplicável às diversas situações, não há um remédio único.
Diante desse quadro, pode-se falar em crise do Direito Internacional?
O Direito Internacional não está em crise, está em mutação. O indivíduo também é sujeito do Direito Internacional, não são só os Estados. E até agora o Direito Internacional tem-se ocupado muito mais dos Estados. Então, ele está um pouco defasado e precisa ser reformulado para abranger situações mais complexas. A Carta da ONU precisa ser refeita, pois não estamos mais em 1945. Agora temos a globalização que, embora tenha aspectos nefastos, tem outros que são excelentes. Então, o Direito Internacional precisa ser repensado, na base da reflexão.
Para onde o senhor acha que vai caminhar o Direito Internacional?
Não tenho bola de cristal. Mas sou otimista em relação ao futuro. Não é a primeira vez que o mundo enfrenta uma crise, não é a primeira vez que a Carta das Nações Unidas é violada, como foi por ocasião da invasão do Iraque. Não devemos dramatizar a situação, mas não podemos tampouco considerá-la uma coisa menor. É grave, mais ainda quando uma superpotência, a hiperpotência, como são chamados às vezes os Estados Unidos da América (EUA), é a primeira a violar o Direito Internacional. Hoje, vivemos num mundo onde o multilateralismo tem de ser privilegiado, só que temos uma superpotência que pratica o unilateralismo. E isso é um retrocesso. Os EUA nunca foram de aplicar à risca o Direito Internacional. Tivemos a guerra do Kosovo, quando era presidente Bill Clinton, e a operação também não seguiu as regras do Direito Internacional. Houve uma intervenção sem o aval do Conselho de Segurança. Então, esse conjunto de situações é preocupante. Talvez nos faltem paradigmas, mas o problema maior na história das relações internacionais é que, talvez, tenhamos acreditado que a ONU nos daria a chave de uma moral internacional, de um savoir-vivre internacional.
E isso não aconteceu?
Só de uma certa maneira. Na verdade, o mundo precisa encontrar um novo ponto de equilíbrio. Não se trata de desejar a volta da União Soviética, nem do Muro de Berlim, longe disso, mas sou obrigado a constatar que na época da Guerra Fria, embora muita gente enfrentasse uma situação horrível, de horror mesmo, havia um equilíbrio. Hoje, não há nenhum equilíbrio. E não podemos ficar indefinidamente num sistema de uma única superpotência. Então, vivemos um período de indagações, de construção, e, por isso, é que não posso responder para onde vamos. Mas não creio que caminhamos em direção a uma grande catástrofe.
A invasão do Iraque pelos Estados Unidos enfraqueceu muito a ONU.
Certamente. A ONU saiu enfraquecida, assim como o Direito Internacional. Mas um dos grandes problemas é que se tem trabalhado com dois pesos e duas medidas. Disseram que Saddam Hussein invadiu o Kwait. Certo, é inaceitável que um Estado anexe um outro, e essa foi a justificativa para a Guerra Irã-Iraque. Mas, depois de tudo, Israel invadiu os territórios palestinos, praticando igualmente um ato inaceitável e nada se fez contra Israel, a não ser votar a Resolução 242, que jamais foi aplicada. Fica evidente, então, que há dois pesos e duas medidas, simplesmente porque os EUA protegem Israel.
Como o senhor vê o futuro do Estado?
Não acredito no fim do Estado. Acredito mais na moralização do papel do Estado. E creio que as organizações não-governamentais são elementos dinamizadores que muito podem contribuir para melhorar o funcionamento do Estado.
Como combater o terrorismo, que tomou proporções alarmantes?
O terrorismo atual adquiriu um caráter onipresente. No passado tivemos atos terroristas, porém eram atos isolados, não vivíamos nessa atmosfera de terror. Hoje, quando pegamos um avião, entramos no metrô, temos sempre uma ameaça sobre nossas cabeças. Atos terroristas podem acontecer em qualquer lugar e a qualquer momento, porque nenhum Estado está protegido contra eles. E o que podem fazer os Estados? Têm dito que há um grande arsenal legislativo, convenções, tratados etc, para lutar contra o terrorismo. É verdade. Mas não temos uma definição do que seja terrorismo. Nunca conseguimos definir o terrorismo, evidentemente, por razões políticas. Então, que devemos fazer quando queremos lutar contra o terrorismo? Depois do 11 de setembro, a ONU adotou uma resolução dizendo que os EUA estavam em situação de legítima defesa, que é uma das hipóteses que autoriza um Estado a usar da força contra um outro Estado que o ataque. Mas quem foram os autores do atentado de 11 de setembro? Defender-se como? Ninguém tem sequer a certeza de que o mandante foi Bin Laden. Ele se regozijou com o atentado, mas nunca disse que foi o autor. Disseram que Bin Laden estava no Afeganistão, abrigado pelo Regime Taliban, e os EUA invadiram o Afeganistão, sob a alegação de que o Taliban e o Afeganistão protegiam o terrorismo. Mas a invasão não foi eficaz. Não acharam o Bin Laden. Então, é melhor que os Estados ajam em conjunto, adotando medidas técnicas e práticas de cooperação policial, de inteligência. Sem esquecer também que há povos que estão desesperados e desesperançados e, como conseqüência, acabam se tornando um berço para o terrorismo.
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