"Devedor condenado tem de ser intimado pessoalmente"

Por José Miguel Garcia Medina,
Teresa Arruda Alvim Wambier e
Luiz Rodrigues Wambier

Em outros estudos já publicados, os autores do presente texto fizeram análise mais ampla das alterações oriundas da Lei 11.232/05, bem como de outras leis que, recentemente, introduziram várias alterações no Código de Processo Civil.[1]

Muito se tem discutido, em artigos de doutrina e em eventos científicos, acerca das várias e intrincadas dúvidas geradas pelas novas disposições legais.Interessa-nos, no presente texto, a questão consistente em se saber se, para o cumprimento da obrigação constante da sentença referida no artigo 475-J, caput, do CPC, é necessária a intimação pessoal do réu, ou se basta que a intimação se dê na pessoa de seu advogado.Assim estabelece o referido dispositivo legal: "Caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de 15 dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de 10% e, a requerimento do credor e observado o disposto no artigo 614, inciso II, desta lei, expedir-se-á mandado de penhora e avaliação".Há, na doutrina, várias opiniões a respeito da questão.
Para uma corrente, o prazo tem início a partir do momento em que a sentença se torna exeqüível, seja porque transitou em julgado, seja porque impugnada por recurso destituído de efeito suspensivo[2].
Para outra concepção, o prazo somente tem início com o trânsito em julgado da decisão, ainda que esta seja impugnada por recurso que não tenha efeito suspensivo[3].
De acordo com outro ponto de vista, tendo havido recurso, o prazo em questão tem início após a intimação das partes acerca da baixa dos autos, bastando, neste caso, que a intimação se dê na pessoa de seus advogados[4].
Para uma outra concepção, o prazo referido somente tem início com a intimação pessoal do executado.[5]
Não pretendemos, no presente texto, examinar e rebater uma a uma das opiniões doutrinárias a respeito do tema, acima referidas a título exemplificativo. É que, muitas vezes, tais autores não têm, necessariamente, opiniões substancialmente distintas, mas que, isto sim, partem de enfoques pragmáticos diferentes.
A interpretação da norma processual deve amoldar-se à realidade fática, propiciando a realização mais célere e simples do direito.
Deve-se privilegiar a idéia de se permitir o desenvolvimento mais simples do processo e que seja menos suscetível de gerar incidentes processuais desnecessários.
Há que se considerar, ainda, que as regras processuais relativas à atuação executiva dos direitos incidem de modo mais rente à realidade social e econômica de uma comunidade, que é extremamente variável, em cada uma das regiões do país.Em outro texto, acima referido, escrevemos que "o executado não é intimado para pagar ou nomear bens à penhora, mas simplesmente para cumprir a obrigação".[6]
Nestas linhas, deixamos entrever que, segundo nosso entendimento, é necessária a intimação do executado para que este cumpra a sentença. Entendemos, além disso, que a intimação para o cumprimento da sentença deve se dar na pessoa do devedor, e não deve ser feita através de seu advogado.São várias as razões que nos conduzem a esta conclusão.
De acordo com o artigo 475-J, caput, "caso o devedor, condenado ao pagamento de quantia certa ou já fixada em liquidação, não o efetue no prazo de 15 dias, o montante da condenação será acrescido de multa no percentual de 10% [...]".
É importante notar que inexiste, na referida regra jurídica, qualquer disposição no sentido de que basta, para que tenha início o prazo de 15 dias, a intimação do advogado do réu.É certo que, de acordo com o parágrafo 1º desse mesmo dispositivo legal, "do auto de penhora e avaliação será de imediato intimado o executado, na pessoa de seu advogado (artigos 236 e 237) ou, na falta deste, o seu representante legal, ou pessoalmente, por mandado ou pelo correio, podendo oferecer impugnação, querendo, no prazo de 15 dias".
No entanto, a intimação do auto de penhora e avaliação ocorrerá em momento procedimentalmente posterior e eventual, isto é, se e quando ocorrer a penhora, diante da negativa do devedor em cumprir a obrigação, após ter sido a isso adequada e suficientemente instado pelo Poder Judiciário.[7]
Não bastasse, a intimação, no caso, justifica-se que seja feita na pessoa do advogado, porque o ato a ser realizado - apresentação de impugnação à execução - é ato para o qual se exige capacidade postulatória, isto é, a parte apresentará a impugnação através de advogado, o que explica plenamente haver disposição legal expressa no sentido de que a intimação se dê na pessoa deste.
O mesmo ocorre no caso do artigo 475-A, parágrafo 1°, também inserido pela Lei 11.232/05.Segundo pensamos, é necessário distinguir os atos processuais que exigem capacidade postulatória dos atos materiais de cumprimento da obrigação.No sistema jurídico processual, há intimações que devem ser dirigidas às partes e intimações que devem ser dirigidas aos advogados. Para tanto, são observados os seguintes critérios, em regra: (a) para a prática de atos processuais que dependem de capacidade postulatória (CPC, art. 36), a intimação deve ser dirigida ao advogado[8]; (b) para a prática de atos pessoais da parte, atos subjetivos que dependem de sua participação e que dizem respeito ao cumprimento da obrigação que é objeto do litígio, a parte deve ser intimada pessoalmente.[9]Assim, por exemplo, a citação inicial, em regra, é pessoal, permitindo-se excepcionalmente a citação de "procurador legalmente autorizado" (cf. art. 215 do CPC).
Para a prestação de depoimento pessoal também deve ser a parte "intimada pessoalmente" (CPC, art. 343, § 1.º), e assim por diante. Em outros casos, o sistema impõe a intimação do advogado, e não necessariamente a intimação da parte, porque o ato a ser realizado é eminentemente processual e exige capacidade postulatória (cf., dentre outros, CPC, art. 242, § 2.º).
O cumprimento da obrigação não é ato cuja realização dependa de advogado, mas é ato da parte. Ou seja, o ato de cumprimento ou descumprimento do dever jurídico é algo que somente será exigido da parte, e não de seu advogado, salvo se houver exceção expressa, respeito, o que inexiste, no artigo 475-J, caput, do CPC.
É interessante observar, a propósito, que nesse sentido vem se manifestando a jurisprudência em relação ao cumprimento da sentença proferida em ações fundadas no artigo 461 do CPC.[10] Também naquele caso, a exemplo do que ocorre com o artigo 475-J, caput, inexiste disposição expressa no sentido de que basta, para que se tenha por exigível o cumprimento da sentença, a mera intimação do advogado. Ademais, também na ação fundada no artigo 461 do CPC, o cumprimento da obrigação é ato que deve ser realizado pela parte, e não por seu advogado.Contra este nosso ponto de vista, poder-se-ia opor o argumento de que a necessidade de intimação pessoal do devedor seria obstáculo ao cumprimento mais célere da sentença. Não nos parece, contudo, que seja assim.
Como, caso não haja pagamento, a multa será somada ao valor da condenação, sendo, portanto, devida pelo réu, e não por seu advogado, parece mais consentânea com o princípio do contraditório a orientação de que o réu deve ser previamente advertido quanto à conseqüência negativa do descumprimento da obrigação.É certo que a possível incidência da multa é algo que deve desempenhar o papel de "estímulo" consistente em medida coercitiva, tendendo a compelir o devedor ao cumprimento da obrigação, mas a eficácia intimidatória de tal medida pode frustrar-se, caso não dirigida diretamente ao devedor.
Afinal, não pode ser desprezada a hipótese de o advogado, motivadamente ou não, deixar de informar ao réu que o descumprimento da sentença acarreta a incidência da multa, circunstância esta que pode esvaziar o objetivo de tal medida.
Por fim, é necessário ressaltar que o respeito irrestrito à Constituição federal não pode ceder passo, qualquer que seja o argumento, sob pena de desmanche da difícil, longa e trabalhosa construção do Estado de Direito brasileiro.
A regulamentação infraconstitucional da Emenda Constitucional 45 e a conseqüente reforma do CPC têm sido palco de diversas iniciativas, algumas já transformadas em lei, evidentemente desprovidas de maior cuidado com o respeito à Constituição federal.
Veja-se, por exemplo, a infeliz regra do artigo 285-A do CPC que, a pretexto de permitir julgamento mais célere de processos ditos "repetitivos", afasta irremediavelmente o princípio do contraditório.No caso ora analisado, a mera intimação do advogado, pelo Diário da Justiça, não pode ser considerada como instrumento hábil e adequado à imprescindível comunicação da parte, sob pena de se perpetrar nova ruptura do sistema constitucional de garantias processuais.Isto porque a "intimação" se dá para que seja cumprido ato pela própria parte, independentemente da participação do advogado, sob pena de sanção pecuniária que será suportada pela parte.Nada justifica, à luz dos mais rudimentares e básicos princípios constitucionais do processo, que se corra o risco de a própria parte não ser cientificada.Na hipótese, devem ser respeitados tanto o princípio do contraditório (em resumo, direito de informação a respeito dos atos processuais) quanto o princípio do devido processo legal (que abarca todas as demais regras processuais, inclusive aquelas relativas às figuras do juiz, do Ministério Público e do advogado).
A propósito do atual movimento de reformas do CPC, muitas delas oriundas de iniciativas de corporações, convém registrar aquilo que deveria ser, sempre, o verdadeiro norte dos movimentos reformistas da lei infraconstitucional.
Trata-se de pensamento do ex-presidente do Tribunal Constitucional alemão, Konrad Hesse, para quem: "os interesses momentâneos - ainda quando realizados - não logram compensar o incalculável ganho resultante do comprovado respeito à Constituição, sobretudo naquelas situações em que a observância revela-se incômoda"[11].--------------------------------------------------------------------------------
[1] Comentários às alterações decorrentes das Leis 11.187/05, 11.232/05, 11.287/06, 11.288/06 e 11.280,06, Luiz Rodrigues Wambier, Teresa Arruda Alvim Wambier e José Miguel Garcia Medina, Breves comentários à nova sistemática processual civil - 2, RT, 2006; especificamente sobre o novo regramento da liquidação e do cumprimento da sentença,
Luiz Rodrigues Wambier, Sentença civil - Liquidação e cumprimento, 3. ed., RT, 2006; sobre as alterações oriundas da nova Lei do agravo (Lei 11.187/05),
Teresa Arruda Alvim Wambier, Os agravos no CPC, 4. ed., RT, 2005.
[2] Nesse sentido, dentre outros,
Athos Gusmão Carneiro, Nova execução. Para onde vamos? Vamos melhorar, RePro 123, p. 118; Araken de Assis, Cumprimento de sentença, Forense, 2006, n. 79, p. 212.
[3] Nesse sentido, Ernane Fidélis dos Santos,
As reformas de 2005 do Código de Processo Civil, Saraiva, 2006, n. 28, p. 56.
[4] Nesse sentido,
Cássio Scarpinella Bueno, A nova etapa da reforma do Código de Processo Civil, Saraiva, 2006, p. 78. No sentido de que a intimação deve se dar na pessoa do advogado do devedor, Nelson Nery Jr. e Rosa Maria de Andrade Nery, CPC comentado, 9. ed., RT, 2006, p.641.
[5] Nesse sentido, Evaristo Aragão Santos, Breves notas sobre o "novo" regime de cumprimento de sentença, in Paulo Hoffman e Leonardo Ferres da Silva Ribeiro (coord.),
Processo de execução civil, Quartier Latin, 2006, p. 34.
[6] Breves comentários..., cit., p. 146.
[7] Na doutrina, de modo lúcido e revelador da preocupação com o máximo rendimento possível do sistema, J. E. Carreira Alvim, embora admita que a intimação se possa dar na pessoa do advogado, afirma que, no momento seguinte, isto é, no da intimação da penhora e avaliação, deve o magistrado mandar intimar pessoalmente o devedor. E o faz com base em razões de ordem prática. A primeira delas está ligada à possibilidade de que o advogado constituído para representar a parte ao longo da ação de conhecimento, não o seja para a fase subseqüente, de liquidação ou de cumprimento. Então, como prudente e claramente sustenta o autor, "quando a intimação, nos novos moldes, se der pela imprensa, e for oferecida impugnação, não haverá problema; mas, se não for, fica a dúvida se o intimado ainda era advogado do devedor, mas foi orientado no sentido de não impugnar, ou, se não mais o era, e, por isso, não impugnou" (Alterações do Código de Processo Civil, 3. ed., Impetus, 2006, p. 175).
No sentir de Carreira Alvim, por cautela, deve o juiz, além da intimação do advogado, pela imprensa, mandar intimar o executado, por carta, com aviso de recebimento, "para evitar que o mesmo alegue desconhecimento da lavratura do auto de penhora e avaliação, comprometendo a validade do procedimento executório" (ob. cit., p. 176).
[8] Cf. STJ, REsp 36265/MG, Rel. Min. Cláudio Santos, 3.ª T., julgado em 29.03.1994, DJ 16.05.1994 p. 11760.
[9] A respeito, Egas Dirceu Moniz de Aragão, Comentários ao Código de Processo Civil, v. II, 9. ed., Forense, 1998, n. 315, p. 238, que escreve: "A parte somente será intimada quando deve, ela própria, ter ciência de algo, a fim de fazer ou não fazer alguma coisa".
[10] Dentre outros, ver os seguintes julgados: STJ, REsp 692.386/PB, Rel. Ministro Luiz Fux, 1.ª T., julgado em 11.10.2005, DJ 24.10.2005 p. 193; TJPR, AgIn 311516-6, rel. Des. Edvino Bochnia, j. 15.12.2005; TJSC, AgIn 2004.020459-0, rel. Des. Trindade dos Santos, j. 07.04.2005; TJRS, ApCív 70009498510, rel. Des. Fabianne Breton Baisch, j. 28.12.2005.
[11] A força normativa da Constituição, tradução de GILMAR FERREIRA MENDES, Ed. Fabris, 1991, p. 21-22.Revista Consultor Jurídico, 10 de julho de 2006 Sobre os autoresJosé Miguel Garcia Medina: é advogado, professor das Faculdades de Direito da Universidade Estadual de Maringá e da PUC-PR, mestre e doutor em Direito pela PUC-SP e autor de O Prequestionamento nos recursos extraordinário e especialTeresa Arruda Alvim Wambier: é advogada.Luiz Rodrigues Wambier: é advogado.

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