Genival Veloso de França Filho –
Advogado e ex-Assessor Jurídico do CRM-PB.
Certamente o tema mais freqüente e palpitante nos últimos fóruns de debates médico-jurídicos tem sido o exame de DNA nos casos de investigação de paternidade. E com muito mais ênfase, quando na questão abordada discute-se a obrigatoriedade ou não do investigando em submeter-se ao exame hematológico para a comprovação da paternidade discutida.
Pelo menos até agora se conhece três correntes que cuidam da matéria, a saber: a primeira, crendo ser obrigatório o exame de DNA no investigando, principalmente quando este seria o único elemento de prova, cuja recusa poderia implicar no crime de desobediência à ordem judicial, aliada à pena de confissão da matéria de fato; a segunda, entendendo que o réu poderia recusar-se ao exame, mas, no entanto, sua negativa resultaria na presunção da verdade dos fatos, independentemente do cotejo com outras provas; e, a terceira, a qual me filio, fundamentada na não-obrigatoriedade do exame, como também admitindo que a negativa por parte do réu não implica em presunção da paternidade, mas, apenas, em um componente que poderá reverter-se em seu desfavor, caso o contexto probatório restante assim o permita.
A verdade que se busca em juízo, seja pelas partes, seja pelo próprio magistrado, deve ser manipulada da forma mais ampla possível, porém sem exceder as barreiras e os limites do razoável, de modo a não colidir com os direitos inerentes à dignidade da pessoa humana fundamentalmente assegurados nos Estados Democráticos de Direito. Mesmo para a busca dessa verdade, os postulados maiores condicionam limites. E como diziam os romanos: Est modus in rebus – há um limite entre todas as coisas.
O que se tem percebido é que o exame do DNA passou a ser, para muitos operadores do direito, condição sine qua non para a comprovação da paternidade, ao argumento de uma certeza científica incontestável. Entretanto, sabemos que essa suposta certeza, quase inabalável, não pode prosperar, principalmente quando se noticia diariamente pelos meios científicos acerca da imprestabilidade de alguns resultado e métodos de exames hematológicos, quando muitos deles, confeccionados em laboratórios não qualificados, despreparados e sem recursos científicos suficientes para a efetivações desses procedimentos.
Sabe-se, ainda, que para se chegar a tão almejada verdade, fim desejado nos litígios entre os demandantes, as partes podem lançar mão de todas as provas possíveis e imagináveis, desde que sejam obtidas por meios lícitos e legais. Pelo menos é essa a posição da nossa lei processual civil que sob o influxo de novas idéias nascidas certamente da necessidade de proteger as pessoas da onipresença sufocante do Estado hodierno, redigiu de forma mais prudente o art. 332, tratando do tema dessa forma:
"Todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, ainda que não especificados neste Código, são hábeis para provar a verdade dos fatos, em que funda a ação da defesa".
Sobre isso também já tratava o antigo Código de Processo Civil de 1939, cuja regra insculpida era a seguinte (Art. 208):
"São admissíveis em Juízo todas as espécies de prova reconhecidas nas leis civis e comerciais". A legislação alienígena seguiu a mesma esteira de entendimento, a exemplo do artigo 379 do Código Procesal Civil y Comercial da República Argentina, o qual mostrou-se mais preciso:
"La prueba deberá producir-se por los medios previstos expresamente por la ley y por los que el Juez disponga, a pedido de parte o de oficio, siempre que no afecten la moral, la libertad personal de los litigantes o de terceros o no estean expresamente prohibidas para el caso". Ninguém melhor que o ilustre mestre e processualista Alcides de Mendonça Lima, in Revista de Processo, nº 43, pag. 138, que em dissertação sobre a eficácia do meio de prova ilícita no Código de Processo Penal brasileiro, argumentou:"Os meios de prova podem ser legítimos (se configurados em lei expressamente, tanto do C.P.C, como em outros textos) e lícitos (não configurados em leis mas admissíveis, se "morais", como, antes do Código de 732 já se admitiu no Brasil, por praxe forense, a inspeção judicial altamente incluída no C.P.C, art. 440 e ss). Um meio legítimo poderá tornar-se ilícito se obtido ou for produzido fora dos ditames morais; mas se o meio ilícito será sempre, evidentemente, ilegítimo, porque, além de não ser estatuído em lei ainda está maculado por qualquer ato do interessado."
E diferente não poderia ser a Constituição Federal de 1988, que também não relegou o tema, dizendo no artigo 5°, LVI, o seguinte: "São inadmissíveis no processo as provas obtidas por meios ilícitos."
De maneira que há de se concluir que todos os meios legais, como ainda os moralmente legítimos, ainda que não especificados na lei, são instrumentos capazes de provar a verdade dos fatos, em que funda a ação da defesa. Outra verdade é que a intimidade pessoal das pessoas está, a cada dia que passa, vasculhada de forma impressionante, dado ao grande poder tecnológico estatal, podendo vê-las e ouvi-las à distância, invadir seu sigilo bancário, bisbilhotar todo seu patrimônio, enfim, o homem está hoje emaranhado na rede que ele próprio teceu.E seu último front, sua derradeira cidadela, é a lei. E por assim ser, não existe no ordenamento jurídico brasileiro atual ou pretérito qualquer dispositivo que obrigue o réu ou quem quer que seja em sede de ação investigatória de paternidade ou maternidade, a submeter-se ao exame pericial solicitado.
Diz a Constituição Federal de 1988 no art. 5º,II:
"Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude da lei."
O mesmo se diga com relação à maioria dos arestos dos nossos tribunais, a começar pelo Pretório Excelso ao se reportar ao assunto dizendo que "ninguém pode ser coagido ao exame ou inspeção corporal, para a prova cível" (RJTJSP 99/35, 111/350, 112/368 e RT 633/70).
Cuida-se de prova que envolve a própria pessoa na sua dimensão física e na sua dimensão moral. Portanto, só o investigando pode decidir sobre a conveniência de submeter-se ao teste, certo que arcará com os ônus decorrentes da negativa, mas essa é outra questão.
Mesmo se se estivesse cuidando de matéria de ordem pública, onde sempre o interesse estatal prepondera em detrimento do particular, mesmo assim o caso seria tratado diferentemente, como por exemplo no processo penal (matéria de direito público), onde descoberta da verdade jamais ultrapassou os limites da decência do réu, que tem o direito de ficar calado (direito constitucional) e até de omitir a verdade, sem que com isso seja interpretado em prejuízo a sua defesa. Aqui não cabe o jargão de que “os fins justificam os meios”, princípio despótico baseado nos modelos fascistas, que não encontram mais guarida em solo democrático.
Se assim fosse, ou seja, se a busca da verdade fosse irrestrita, sem barreiras, a probatio prabatissima do direito intermediário teria plena atualidade, submetendo-se o réu a todas as torturas e violações da narco-análise, do lie detector, e outros engenhos criados para fustigar ainda mais o ser humano, já tão esmagado pelas distorções atuais da sociedade, com o único objetivo do esclarecimento da almejada “verdade”.
Em suma, o réu recusando-se a submeter ao exame hematológico de DNA, mesmo por determinação judicial, não estaria cometendo o crime de desobediência, nem tampouco arcando com as duras conseqüências da confissão ficta; a uma, pela total falta de amparo legal que possa tipificá-lo no delito mencionado; a duas, porque ninguém, por autoridade que seja, poderia estabelecer, com precisão, que o filho gerado foi produto de uma determinada relação sexual, mormente em se tratando da hipótese de plurium concubetium; então, a negativa do réu implicaria na presunção da paternidade? Em caso positivo, seria um grande absurdo.
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